A mensagem e o exemplo de vida de S. Francisco de Assis, sabemo-lo bem, marcaram de forma profunda os seus contemporâneos e as legiões de seguidores que, ao longo dos séculos, procuraram viver o seu ideal. A admiração experimentada pelos contemporâneos cedo inspirou os artistas que traçaram o seu retrato. Muito cedo se multiplicaram os textos biográficos e as várias leituras interpretativas, motivadas pelo zelo do fiel cumprimento da Regra. A saudade e a admiração, a bem documentada afeição do Santo pelas criaturinhas de Deus, a aparente ingenuidade, bem patente nas Florinhas, multiplicaram e doiraram as recordações, dilataram as legendas, constituindo forte desafio aos modernos biógrafos.
Um dos mais recentes, historiador e severo crítico (Augustine Thompson), reflectiu:
“Muitos dos nossos contemporâneos terão sido apresentados a Francisco através do filme de Franco Zeffirelli (“Irmão Sol, Irmã Lua”), o derradeiro e talvez mais grandioso monumento numa série de interpretações românticas que remontam há mais de um século. Nesta história, Francisco é um espírito livre, um génio religioso sem rédeas, uma espécie de hippie medieval, incompreendido e depois explorado pela Igreja medieval. Ou talvez o conheçam como o homem que falava com os animais, um místico da Natureza, ecologista, pacifista, feminista, uma “voz do nosso tempo”. Para outros, ele é o diminuto homem de gesso nos bebedouros dos pássaros, o mais encantador e inofensivo dos santos católicos.
À semelhança de Jesus, Francisco pertence a todos, e, por isso, todos ou quase todos têm o seu próprio Francisco. Talvez seja assim que deva ser”.
Múltiplas são, pois, as leituras – e quantas vezes apenas ressonâncias das opções ideológicas dos seus autores…
Todos quantos, modernamente, se sentem movidos pelo sentido, pela preocupação, pelo imperativo de lutar pelo respeito do meio ambiente, na sua relação com o ser humano, ou seja: na consideração da Criação como “casa do homem”, vieram a experimentar profunda admiração pela atitude de Francisco de Assis em relação à natureza criada por Deus. Ao seu encontro veio o Papa João Paulo II com a sua Carta Apostólica:
“Entre os santos e preclaros varões que respeitaram a natureza como maravilhoso presente que Deus fez ao género humano, figura merecidamente São Francisco de Assis. Pois com sensibilidade singular ele apreciava todas as obras do Criador e, como que divinamente inspirado, criou o admirável “Cântico das Criaturas”, as quais, o irmão sol sobretudo, e a irmã lua como as estrelas do céu, lhe davam ensejo de render devidamente louvor, glória, honra e toda a bênção ao altíssimo, onipotente e bom Senhor.
Estava, pois, muito bem avisado o nosso venerável Irmão Sílvio Oddi, Cardeal da Santa Romana Igreja e Prefeito da Sagrada Congregação para os Clérigos, quando, fazendo-se porta-voz principalmente dos membros da Associação Internacional chamada “Planning envíronmental and ecologycal Institute for quality life”, pediu a esta Sé Apostólica que São Francisco de Assis fosse declarado padroeiro junto de Deus daqueles que se empenham pela Ecologia.
E Nós, de acordo com a Sagrada Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino, em virtude destas Letras, válidas para todo o sempre, proclamamos São Francisco de Assis, padroeiro celestial de todos os cultores da Ecologia, com todas as honras e respectivos privilégios litúrgicos”.
Aponta um comentador não identificado:
”Na sua profunda estima pelas realidades da Criação, Francisco chega ao ponto de personificar as coisas – a pobreza é agora a senhora pobreza”; as virtudes chamam-se agora “a rainha sabedoria, sua santa irmã, a pura simplicidade”; a andorinha é a “irmã andorinha”. O mesmo acontece com o “irmão lobo”, “o senhor irmão Sol”, a “mãe e irmã terra”.
Tudo isto se explica, não apenas pelo espírito poético, aliás inegável, de Francisco, mas sobretudo pela sua experiência religiosa da paternidade universal de Deus, não se tratando, pois, de um puro romantismo ou de um sentimentalismo balofo”.
Na verdade, há quem tenha as suas reservas: ainda recentemente o Arcebispo primaz da Bélgica se afirmou perplexo perante muitos que admiram Francisco porque ele cantou a beleza da natureza e pregou aos pássaros, difundindo assim uma concepção demasiado optimista da criação; ora, diz o prelado, a vida quer dos humanos quer dos animais é trágica na sua crueldade. Assim ele repele certo espírito franciscano piedoso que, afirma, celebra sem qualquer matiz a beleza do cosmos.
Mas o matiz exigida pelo arcebispo revela-se e impõe-se com evidência: o segredo da atitude de Francisco, apaixonado crente em Deus e no Seu Cristo, é absolutamente inseparável do seu itinerário espiritual. Profundamente impregnado pela Bíblia, fonte inspiradora dos seus escritos, Francisco sabia ler na Natureza a acção providente e amante do Todo-Poderoso Criador do Céu e da Terra, aí encontrando a moção dos seus louvores.
Como pondera um comentador franciscano, em texto não assinado:
“Donde veio a Francisco a ideia da profunda comunhão com o cosmos? Ele, que nada sabia de ecologia nem de cosmologia…Vem-lhe certamente da convicção de que Deus é o Pai-criador de todas as coisas, vivida numa intensa fé religiosa. Isso despertou nele a ideia de fraternidade universal, uma fraternidade cósmica, de irmão de todas e de cada uma das pequenas ou grandes criaturas que Deus criou. Mas Francisco não conserva uma atitude passiva perante a natureza, à maneira de um oriental, como foi acusado por alguém. O olhar de Francisco sobre a natureza não é um olhar puramente ingénuo e inocente, ou mesmo de ignorante”.
Tudo isto se plasma no seu “Cântico das Criaturas”, ou “Cântico do Irmão Sol”, em que Francisco deixa ver neste celebrado hino de louvor o seu amor pela Natureza – como dádiva do Criador aos homens .
Por outro lado, o “Pobrezinho de Assis “, que deixou à posteridade um importante conjunto de escritos religiosos da maior importância, não obstante se qualificar a si mesmo como “homem simples e sem letras”, mostrou-se inspirado poeta e homem culto segundo as perspectivas do seu tempo.
O “Cântico das Criaturas” é o mais antigo documento poético conhecido da literatura italiana, escrito no vernáculo materno do Santo – o úmbrio, em breve fixado em formas imortais por Dante e Petrarca.
Como refere pormenorizadamente o comentador que tenho vindo a citar, o Cântico é fortemente inspirado nos textos bíblicos, nomeadamente no Salmo 148 e no Cântico dos três jovens na fornalha, do Livro de Daniel.
É de notar que não é uma simples “lista” de seres criados: marcado embora pelo modelo bíblico, reflecte as concepções cosmológicas e físicas da época, tais como então eram ensinadas nas escolas: os astros, os quatro elementos da Natureza – ar, fogo, água e terra.
É um poderoso louvor de Deus, louvor que se proclama através das Suas obras, louvor que se mostra como um hino à vida. É oração impregnada de uma visão positiva da natureza, a reflectir o Poema da Criação do Génesis (“Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”…), pois na criação reflecte-se a imagem do Criador. Como disse alguém, no seu optimismo, o texto de Francisco situa-se nos antípodas do contemptus mundi que marcava outras tendências religiosas da Idade Média, ou da concepção cátara segundo a qual toda a realidade material seria de origem demoníaca. Daí deriva aquele sentido de fraternidade entre o homem e toda a criação: todas as criaturas são irmãos e irmãs!
Até a morte – a Irmã Morte Corporal – é acolhida no Cântico de modo consolador: passagem do justo para a verdadeira vida em Deus.
Assim a criação é apresentada como um grandioso meio de louvor ao Criador!
Adelino Marques
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( * ) Palestra pronunciada em 30/04/2014 na 4.ª sessão do ciclo de conferências “Património com Vida”, comemorativo do 355.º aniversário da fundação da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco de Coimbra.