INVENÇÃO E EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

A propósito dos quadros de Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão
existentes na sede da Ordem Terceira de S. Francisco de Coimbra

por Adelino Marques

A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

Espírito da celebração:

O calendário litúrgico actual celebra uma única festa: a Exaltação da Santa Cruz, em 14 de Setembro.

Esta festa é também chamada “Festa da Cruz Gloriosa”. E os Cristãos Orientais denominam-na «Festa da Exaltação Universal da Honorável e Vivificante Cruz».

É uma das mais antigas solenidades litúrgicas da Igreja; celebrava-se já em Jerusalém no tempo do Imperador Constantino Magno (337), logo a seguir à dedicação da Basílica do Santo Sepulcro, ou da Ressurreição, mandada edificar por esse imperador

A Cruz que se exaltava neste dia não era exactamente a de Jesus a sofrer no Calvário mas antes a de Cristo glorioso subindo para o Pai, depois de vencer a morte e salvar o mundo. Quanto ao sentido da festa, Santo André de Creta diz: “Celebramos a festa da Cruz; por ela as trevas são repelidas e volta a luz. Celebramos a festa da Cruz e junto com o Crucificado somos levados para o alto para que, abandonando a terra com o pecado, obtenhamos os céus. A posse da Cruz é tão grande e de tão imenso valor que o seu possuidor possui um tesouro.”

O que se recorda na festa de hoje é portanto o triunfo de Cristo e a mudança por ele causada na condição humana; isto tinha-o Jesus anunciado repetidamente. Por exemplo, quando dizia: «Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis quem sou» (Jo 8, 28); e ainda: «Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também tem de ser levantado o Filho do Homem, a fim de que todo aquele que n ‘Ele crer tenha a vida eterna» (Jo 3, 14); e por fim: «Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12,32).

É marcado por este espírito que o Apóstolo Paulo assinala: “Quanto a mim, que de nada mais eu me glorie a não ser na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6, 14).

 

COMENTÁRIOS

Como em numerosas outras circunstâncias da vida religiosa, verificaremos aqui também a existência de uma tensão, nem sempre de concórdia, entre os “acontecimentos historicamente demonstráveis” e as “legendas piedosas”.

História:

Há notícia exacta de que esta festa já se realizava em 337, no tempo do Imperador Constantino I Magno (édito de Milão, da liberdade religiosa dos cristãos, 313), poucos anos depois da dedicação da monumental basílica do Santo Sepulcro e Ressurreição do Senhor, em Jerusalém, que se realizou em 14 de Setembro de 335. Eusébio de Cesareia conta-nos, na Vida que escreveu do primeiro Imperador cristão, as festas celebradas em sua honra ao completar treze anos de reinado, que incluíram a dedicação da Basílica.

Foi notável a acção da Rainha Santa Helena, mãe do Imperador, na procura de lugares ligados à passagem de Jesus na Palestina, com edificação de numerosas igrejas e monumentos em Jerusalém e noutros lugares, dos quais restam ainda importantes vestígios bem identificados, e muito em particular nas explorações que ela mandou fazer no lugar tradicionalmente apontado nessa altura como sendo o lugar do Calvário e do Túmulo, onde veio a ser construída a Basílica.

Nessa altura foram descobertos nas cavernas restos de um madeiro que, embora sem unanimidade de opiniões (Eusébio, Bispo de Cesareia, era a favor; Macário, patriarca de Jerusalém, era contra), foram considerados restos do madeiro da Vera Cruz, os quais foram expostos à veneração na basílica e logo, passados poucos anos, divididos em numerosas parcelas, oferecidas a variados destinatários do mundo cristão.

 

 

Legenda:

A partir de uma dada altura, passou a celebrar-se também a piedosa crença da “Invenção”, isto é, o “Achamento”, com a intervenção da Rainha Santa Helena (mãe do Imperador), a narrativa das 3 cruzes que teriam sido encontradas em uma caverna no Calvário e a identificação da “Vera Cruz” pela cura milagrosa de uma doente.

História:

O madeiro da “Vera Cruz” – o “Santo Lenho”, descoberto e identificado nessas condições, foi na sua maior parte reverentemente conservado na basílica do Santo Sepulcro e da Ressurreição em Jerusalém; o seu culto difundiu-se por todo o mundo romano, com a difusão dos seus fragmentos. A basílica de Santa Cruz de Jerusalém, construída em Roma no local de um palácio imperial, foi construída para a conservação de um desses fragmentos.

Mais tarde juntou-se-lhe a comemoração da vitória do Imperador Heráclio sobre os persas do Rei Cósroas, em 628, após a calamitosa invasão de 615, com o roubo da preciosa Relíquia.

O Imperador entrou em Jerusalém em 3 de Maio de 630, transportando pessoalmente a Relíquia recuperada, que entregou ao Patriarca Zacarias. Depositada de novo na Basílica do Sepulcro e Ressurreição do Senhor, a sua ostensão solene continuou a atrair a Jerusalém multidões de peregrinos.

 

De novo a Legenda:

A Legenda regista a seguinte piedosa crença: O Imperador, a cavalo e magnificamente revestido e coroado, sentiu-se impedido de entrar na Cidade. O Patriarca Zacarias admoestou-o: “Como é que entras assim, quando o Salvador entrou descalço e humildemente vestido?”. Modificando a indumentária, o Imperador pôde enfim entrar.

 

História:

A festa de 14 de Setembro passou de Jerusalém a todo o Oriente e depois ao Ocidente. Roma recebeu-a no século VII e veio a marcá-la como a Festa do Triunfo e Exaltação da Santa Cruz. Em consequência, ao longo de muitos séculos passaram a ser celebradas duas festas: Invenção da Santa Cruz, em 3 de Maio; Exaltação da Santa Cruz, em 14 de Setembro (inverteu-se a ordem do calendário, o que não incomodou as sucessivas gerações de crentes).

Com a reforma do calendário litúrgico, após o Concílio Vaticano II, juntaram-se as duas festas em 14 de Setembro, com apelo ao seu mais profundo significado.

 

Os quadros de Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão:

 

Estes dois pintores, integrados na tendência artística do maneirismo, realizaram várias obras em Coimbra a partir de 1597. A mais notável foi o retábulo principal da Igreja do Carmo, considerado uma das mais importantes realizações do maneirismo português. Ainda em Coimbra realizaram obras para a Sé Velha, o Mosteiro de Santa Cruz e a capela da Universidade. Pertenceram justamente ao primitivo retábulo da capela-mor da Igreja de Santa Cruz as quatro pinturas em madeira que se encontram no salão polivalente da Ordem Terceira e são objecto da nossa atenção.

Reflectem, como era tradicional, as “legendas” que se referem acima: de um lado, a Rainha Santa Helena a conduzir os trabalhos de pesquisa arqueológica e a testemunhar a identificação da Vera Cruz pela cura da doente; do outro lado, o imperador Heráclio a deter-se à porta da Cidade e, a seguir, a avançar descalço e modestamente vestido.

 

 

PENSAMENTO FINAL:

Tudo isto considerado, há que reflectir com redobrada atenção no espírito que há-de nortear a celebração, tanto na festa da Exaltação em 13 de Setembro como no rito da Adoração da Cruz em Sexta-Feira Santa!

 

Toda a nossa glória está na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
N’Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição.
Por Ele fomos salvos e livres.

(da liturgia da Festa)